Haveria festa numa casa do setor Papillon Park, em Aparecida de Goiânia, no domingo, 2, onde mora a dona de casa Maria das Graças Soares, a Graça, de 54 anos. Mas não houve. Há 18 anos um aniversário deixou de ser comemorado ali. Murilo Soares Rodrigues faria 30 anos no domingo, mas está desaparecido desde a noite daquela sexta-feira, dia 22 de abril de 2005.
O sumiço de Murilo e do pedreiro Paulo Sérgio Pereira, que tinha 21 anos na época, faz parte dos casos insolúveis mais gritante das crônicas policiais de Aparecida de Goiânia. Aos 12 anos de idade, Murilo foi visto pela última vez sendo abordado por policiais militares da Rondas Ostensivas Táticas Metropolitana (Rotam) na Rua Tapajós, na Vila Brasília, no município, juntamente com Paulo. Os corpos de ambos nunca mais foram vistos até o momento.
“É sofrimento demais! Você sabe o que é dor?! Parece que você está com uma faca cravada no seu peito 24 horas. Só uma mãe que perdeu o filho para entender o que eu sinto”, lamentou Graça com a voz embargada ao Diário de Aparecida na tarde de ontem, 4.
Graça não conseguiu retomar completamente a vida desde então, vive um constante misto de dor e luta para encontrar Murilo. Ela desenvolveu uma oscilação de humor com elementos psicóticos, segundo laudo médico, e para sobreviver, precisa de dez remédios diferentes diariamente.
Graça diz que não espera mais pela justiça do Estado, segundo ela, apenas de Deus. A esperança de encontrar a ossada “pode amenizar um pouco o sofrimento”. “Investigaram a vida do meu filho e constaram que ele era inocente. Então, minimiza estas perguntas sem respostas ‘o que aconteceu?’, muita coisa. Se eu encontrar o corpo eu vou saber o jeito que ele foi morto”, acredita.
Durante entrevista ao DA, Dona Graça chorou a todo instante e afirmou que não consegue ter uma vida ativa ou trabalhar. Atualmente, depende da aposentadoria da mãe e do filho mais velho, que inclusive paga um plano de saúde para ela, fator importante para manter o tratamento psicológico e psiquiátrico. Dos três netos, um deles se chama Murilo em homenagem ao filho desaparecido.
Questionada sobre o como é o seu dia, a resposta é resumida em uma só palavra: “péssimo!”. O desânimo emocional é agravado por causa das doenças e dos efeitos colaterais dos remédios. Graça conta que passa boa parte do dia deitada, e às vezes lhe falta energia para tarefas corriqueiras do lar, como preparar o almoço. “Minha vida acabou”.
Graça ainda mantém uma série de lembranças do filho, que guarda como um tesouro: a chuteira e uniforme que ele jogava futebol, a bandeirinha de TNT do último jogo que ele foi, fotos, todas as reportagens publicadas sobre o desaparecimento, camisetas de “procura-se” com a foto de Murilo, uma para cada ano. “A psicóloga falava que não era bom ficar guardando as coisas do Murilo. Na hora que ela falava, eu concordava. Mas quando eu chegava em casa, eu não tinha coragem de doar”, lembra Graça.
Até 2021, Graça manteve o quarto de Murilo intacto, inclusive com a tinta vermelha em uma das paredes, pedido do adolescente, que era torcedor do Vila Nova. Em 2021, ela teve que doar a cama do garoto e pintar a parede, para dar espaço à mãe idosa, que agora mora com ela e usa o antigo quarto de Murilo.
Ameaças
Logo depois do desaparecimento, Graça e o ex-marido procuraram a polícia e a imprensa. Foram anos pressionando as autoridades por uma resposta. Por causa disso, ela chegou a ser ameaçada por telefone várias vezes.
“Me ligavam no telefone fixo, quando eu saía na televisão ou em algum jornal. Falavam que se eu não calasse, iam me calar”, recorda Graça. Na época, ela pregava cartazes com a foto de Murilo pelas ruas da cidade.
Na primeira década de 2000 houve uma onda de pessoas desaparecidas após abordagem policial em Goiás, sendo Murilo o mais novo deles. Relatório da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Goiás (Alego) chegou a contabilizar 36 desaparecidos após ação da PM nesse período.
Familiares desses desaparecidos chegaram a formar um grupo de reivindicação chamado Comitê Goiano Pelo Fim da Violência Policial, que acabou sendo dissolvido com o tempo. Alguns abandonaram o grupo por medo, após ameaças. Hoje, parentes de mortos em ações do Estado formam o Mães de Maio do Cerrado. “A gente fala por telefone, uma consola a outra”, explica Graça.
Memória
A memória de Murilo também está presente de outras maneiras. Um parque do setor Mansões Paraísos, em Aparecida, ganhou o nome de Criança Murilo Soares, projeto do vereador Willian Panda (PSB), que conheceu o garoto quando criança. A mãe de Murilo costuma frequentar o parque. “É um momento de descarrego, quando eu vou, para mim, é como se o Murilo estivesse lá”.
Em 2020, Graça conseguiu uma simulação gráfica de como Murilo seria se estivesse vivo, que ela também guarda como tesouro. No mesmo ano, foi emitida uma certidão de óbito de morte presumida de Murilo.
“Eu achei que com a certidão de óbito colocaram mais um ponto final na minha história. Como se estivesse comprovado que ele está morto, para não ficar mais cutucando. (…). Mas enquanto tiver uma luz no fim do túnel, eu vou lutar”.
Indícios da investigação apontam que a Murilo foi morto como queima de arquivo
Oito militares da Rotam chegaram a ser presos por um tempo e se tornaram réus acusados de assassinar e esconder o corpo de Murilo e do pedreiro Paulo Sérgio Pereira, de 21 anos, que dirigia o carro em que o adolescente estava no momento da abordagem. No entanto, todos eles foram absolvidos pela Justiça goiana por falta de provas materiais. O Ministério Público do Estado de Goiás (MP-GO) recorreu da sentença, o julgamento foi anulado e os policiais levados ao Tribunal do Júri. Prevaleceu, contudo, a tese de falta de indícios, já que os corpos não foram encontrados.
No dia 22 de abril de 2005, uma sexta-feira, o pai de Murilo, separado de Graça, pediu que Paulo Sérgio levasse o filho no carro Palio até a casa da mãe. A abordagem policial aconteceu no meio do caminho. Paulo tinha antecedentes criminais e era frequentemente ameaçado por policiais. Várias testemunhas viram o momento da abordagem, quando um dos policiais entrou no carro com Murilo e Paulo. O Palio seguiu viagem, acompanhado pela viatura preta da Rotam
O carro em que eles estavam foi encontrado em chamas, no dia seguinte, no setor Alto do Vale, em Goiânia. O veículo estava sem as rodas e equipamentos de som, além de totalmente queimado. Não havia sinais de corpos. A perícia comprovou que o incêndio foi criminoso. Os indícios da investigação são de que Murilo e Paulo foram mortos como queima de arquivo.
Uma das questões que pesou nas decisões judiciais que levaram ao arquivamento foi a falta dos corpos das vítimas. A Polícia Civil informou que o inquérito do caso foi concluído e remetido ao Judiciário. O MP-GO afirmou, por meio de nota, que “na absolvição dos policiais, o Poder Judiciário entendeu não ter sido comprovada a materialidade dos homicídios em razão de os corpos não terem sido encontrados”. Ainda de acordo com o comunicado, não é possível reabrir uma investigação sem novos elementos.
O Diário de Aparecida entrou em contato com a Polícia Militar (PM) e o TJ-GO, por e-mail enviado no início da manhã de ontem, 4, e aguarda retorno sobre o caso.
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Reporter: Eduardo Marques