“Anistia é perdão”: Bolsonaro pede pacificação enquanto se torna réu por tentativa de golpe
Ex-presidente volta a defender anistia para envolvidos nos atos de 8 de janeiro, mas especialistas apontam tentativa de autoproteção. STF aceita denúncia e transforma Bolsonaro em réu. Polícia Federal aponta estrutura de comando, minuta de golpe e plano para prender Moraes e Lula.
“Anistia é perdão, é passar borracha, é fazer o Brasil voltar à sua normalidade. Eu não quero conflito, confronto. Eu quero o bem-estar do meu povo. Não tenho obsessão pelo poder, tenho paixão pelo Brasil.”
A frase, dita por Jair Bolsonaro (PL) nesta semana, marca o tom de sua nova ofensiva política. Enquanto se torna réu no Supremo Tribunal Federal por tentativa de golpe de Estado, o ex-presidente volta a defender publicamente uma proposta de anistia ampla aos envolvidos nos atos de 8 de janeiro de 2023.
Para seus aliados, o gesto é um chamado à pacificação nacional. Para juristas, opositores e setores do Ministério Público, trata-se de uma estratégia para blindar a cúpula bolsonarista — incluindo o próprio ex-presidente — das investigações e das penas previstas pela legislação brasileira.
O projeto de lei que tramita no Congresso, segundo especialistas, abre margem para incluir como beneficiários os articuladores do plano golpista, e não apenas os manifestantes detidos. E o momento do pedido não passou despercebido: a fala de Bolsonaro ocorre justamente na semana em que ele foi tornado réu pelo STF, em decisão unânime dos ministros da Primeira Turma.
O que foi o 8 de janeiro e o que ele representou
Os atos de 8 de janeiro de 2023 entraram para a história como o maior ataque institucional à democracia brasileira desde o fim da ditadura militar. Naquele domingo, milhares de bolsonaristas invadiram e depredaram o Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal e o Palácio do Planalto, em Brasília, com o objetivo declarado de impedir o governo democraticamente eleito de Luiz Inácio Lula da Silva de se consolidar.
Mais de 1.400 pessoas foram presas nas 48 horas seguintes aos ataques, com base em imagens, rastreamento de celulares e depoimentos. Parte significativa delas respondia a processos por associação criminosa, tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito e depredação do patrimônio público.
Segundo o cientista político Felipe Borba, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), o 8 de janeiro representa um divisor de águas.
“Foi o dia em que o país viu sua democracia sendo fisicamente atacada. E não foi algo espontâneo. Foi uma ação coordenada, com logística, financiamento e discurso político”, afirmou o pesquisador.
A simbologia do ataque, comparada por analistas ao episódio do Capitólio nos Estados Unidos, causou forte repercussão internacional. Imprensa estrangeira, como The Guardian, Le Monde, El País e The New York Times, classificou o episódio como uma tentativa explícita de golpe e alertou para a ameaça de retorno ao autoritarismo em países da América Latina.
Como Bolsonaro virou réu: os passos até o STF
Em novembro de 2024, a Polícia Federal apresentou ao Supremo Tribunal Federal um extenso relatório de 136 páginas detalhando a atuação de Bolsonaro e aliados na tentativa de subversão democrática. O documento incluiu trechos de mensagens, áudios, vídeos, reuniões gravadas e a chamada “minuta do golpe”, apreendida na casa do ex-ministro da Justiça, Anderson Torres.
A minuta previa a decretação do Estado de Defesa no Tribunal Superior Eleitoral e a anulação do resultado das eleições presidenciais. No documento, constava a autorização para prender o ministro Alexandre de Moraes e convocar novas eleições.
No mesmo mês, a Procuradoria-Geral da República (PGR) apresentou denúncia contra o ex-presidente, baseada no inquérito da PF, acusando-o de liderar uma “organização criminosa armada”, com forte apoio de militares da reserva e da ativa.
Segundo o procurador Paulo Gonet, responsável pela denúncia, Bolsonaro tinha conhecimento, comandava e participava ativamente do plano.
“Não se trata de uma manifestação espontânea. Trata-se de uma tentativa deliberada de ruptura institucional, com apoio logístico e financiamento”, afirmou Gonet em coletiva.
Em 26 de março de 2025, a Primeira Turma do STF — composta pelos ministros Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia, Flávio Dino, Luiz Fux e Cristiano Zanin — votou por unanimidade pela aceitação da denúncia. Com isso, Jair Bolsonaro tornou-se oficialmente réu por tentativa de golpe de Estado, ao lado de outros sete aliados próximos.
As provas da Polícia Federal
A investigação da Polícia Federal reuniu um robusto conjunto de evidências para embasar a denúncia. Entre os principais elementos apresentados estão:
-
Minuta do golpe: documento com logomarca da República, prevendo intervenção militar e prisão de ministros do STF e do TSE.
-
Depoimento de Mauro Cid: o ex-ajudante de ordens confirmou que Bolsonaro orientou a preparação de decretos e discutiu estratégias para impedir a posse de Lula.
-
Reuniões gravadas: encontros secretos entre Bolsonaro e aliados discutindo “estratégias de resistência”, interceptados com autorização judicial.
-
Troca de mensagens entre militares: oficiais da reserva relatando movimentações “em caso de ruptura institucional”.
-
Vídeos e áudios de discursos de Bolsonaro incitando o não reconhecimento do resultado das urnas e incentivando manifestações em quartéis.
Segundo o delegado federal Rafael Soares, responsável pelo inquérito, “a estrutura do plano estava em andamento e contava com o silêncio de setores das Forças Armadas e com apoio de parlamentares”.
“Ao incluir o período desde outubro de 2022, o texto da anistia atinge não só os manifestantes, mas quem eventualmente financiou ou orientou o movimento. Isso pode significar a anulação de processos em curso, inclusive os mais graves”, alerta Sampaio.
Já a jurista Eloísa Machado, da FGV Direito-SP, vai além:
“A anistia, nesses termos, é inconstitucional. A Constituição de 1988 não permite o perdão para crimes contra a democracia. Isso inclui golpe de Estado, tentativa de ruptura institucional e atentado ao Estado de Direito.”
“Se é inocente, não precisa de anistia”: reação nas redes sociais
Nas redes sociais, a fala de Bolsonaro sobre “passar a borracha” virou alvo de críticas e memes. Comentários como “Tem borracha aqui não, só marca-texto neon” ou “Se é inocente, não precisa de anistia” viralizaram.
No Instagram, os principais comentários se referem ao pedido como uma “confissão de culpa” e uma “tentativa desesperada de escapar da Justiça”. A tag #SemAnistia voltou a subir no Twitter (X), sendo compartilhada por figuras públicas, influenciadores, artistas e parlamentares de oposição.
Lula vê confissão no pedido de perdão
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva comentou o pedido de anistia durante evento no Palácio do Planalto.
“Quem pede perdão é porque cometeu um erro. Quem não cometeu crime, não precisa de anistia”, disse Lula.
A fala foi interpretada como um contraponto direto à tentativa de Bolsonaro de se recolocar no debate público. Lula reforçou que não haverá interferência política nas decisões do STF, mas destacou que a democracia não pode “abrir mão de sua defesa institucional”.
O futuro da anistia: Congresso dividido e pressão social
A proposta de anistia avança lentamente na Câmara, onde setores bolsonaristas articulam para garantir quórum. O presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), evitou se posicionar, mas interlocutores indicam que a proposta só será votada após as manifestações do 7 de Setembro de 2025, previstas para ocorrer em Brasília e São Paulo.
Senadores como Randolfe Rodrigues (sem partido-AP) já afirmaram que “anistia para golpista é pacto com o crime”, enquanto aliados de Bolsonaro como Marcos do Val (Podemos-ES) defendem que o texto seja estendido também às Forças Armadas.
A insistência de Bolsonaro na anistia abre uma nova etapa no cenário político brasileiro. Com o ex-presidente agora réu, a proposta deixa de ser um gesto simbólico e se torna uma tentativa concreta de reverter o avanço das investigações.
Para analistas, a democracia brasileira está diante de mais uma encruzilhada histórica. O caminho entre justiça e reconciliação segue aberto — e, para muitos, incompatível com o esquecimento.