Por que Odete Roitman continua sendo um sucesso — e um incômodo necessário
Ícone da televisão brasileira, a vilã de Vale Tudo retorna em 2025, mais atual do que nunca. Sua permanência revela o que persiste na estrutura de poder, preconceito e classe no Brasil.
Em 2025, a nova versão de Vale Tudo é transmitida para um Brasil diferente — mas não tanto assim. A inflação está controlada, a democracia institucionalizada, mas o país vive sob a sombra de uma crise fiscal crônica, desigualdade estagnada, bolhas de hiperconsumo digital e um tipo crescente de intolerância travestida de opinião.
Nesse contexto, Odete Roitman retorna à televisão como se nunca tivesse saído — apenas trocou o figurino. Sob a caneta de Manuela Dias, ela ressurge mais fria, mais controlada, mais sutil. E por isso, mais realista.
Ela não grita. Cancela.
Não bate na mesa. Processa.
Não humilha aos berros. Faz com elegância e sotaque de condomínio de luxo.
Essa nova Odete representa com precisão cirúrgica o novo conservadorismo brasileiro: aquele que se sofisticou, que aprendeu a se expressar com suavidade, mas mantém o mesmo desprezo pelo diferente. Um conservadorismo que usa “liberdade” para esconder privilégio e “ordem” para mascarar exclusão. Ela é a elite atualizada: menos barulhenta, mas ainda letal.
Nas redes sociais, viralizam frases como:
“Chique não é ser exclusivo, Celina. Chique é ser único.”
A reação do público oscila entre o riso e o desconforto. Porque a personagem provoca não só memória, mas reconhecimento.
“Se você nunca trabalhou para uma Odete Roitman, talvez você seja a Odete Roitman.”
“Odete hoje estaria no grupo do condomínio, falando mal de quem mora de aluguel.”
“Odete seria contra o aumento do salário mínimo, mas a favor do brunch com ‘gente do bem’.”
Essas frases não são apenas memes — são códigos culturais. Pequenas sentenças que ajudam a decifrar por que essa vilã continua funcionando. Odete não é mais só uma personagem: virou arquétipo.
“Porque o Brasil continua profundamente marcado por hierarquias invisíveis”, explica uma socióloga ouvida nesta reportagem. “A elite brasileira ainda rejeita o país. Ainda há quem ache que ser educado é ser estrangeiro, que ser rico é ser inalcançável. Odete Roitman ainda é um modelo possível — e por isso ainda é perigosa.”
Da caricatura à plausibilidade
Em 1988, Odete Roitman era quase uma caricatura: falava de Londres como se tivesse nascido lá, esnobava os filhos, odiava o Brasil e se cercava de objetos de luxo como quem constrói trincheiras. Representava a elite ressentida, colonizada, que usava o consumo para camuflar o desprezo pelas próprias raízes.
Hoje, ela foi lapidada. Mas não perdeu a essência. Apenas trocou a fúria pela estratégia.
E assim como na versão original, é ela quem sustenta o fôlego da audiência. Enquanto a teledramaturgia tradicional luta para sobreviver diante da ascensão das plataformas, Odete reina nos recortes de vídeo, nos tweets, nos cards virais. Porque ela provoca algo raro: desconforto lúcido.
A elite que aplaude Odete ainda está entre nós
Ao retornar ao centro do debate cultural, Odete Roitman não nos oferece apenas nostalgia. Ela nos obriga a encarar o que há de mais estrutural — e mais negado — na sociedade brasileira: o prazer de humilhar com classe.
Sua fala fria, seu desprezo pelo pobre, seu olhar entediado diante da empatia, tudo isso ecoa nas figuras públicas de hoje, travestidas de modernidade. O Brasil de 2025 continua polarizado, desigual, com redes sociais organizadas como trincheiras e uma elite que ainda acredita que falar sem sotaque e tomar vinho francês a torna moralmente superior.
O horror que Odete sentia pela mistura social permanece nos portões de condomínio que expulsam entregadores, nas escolas que segregam por mensalidade e nas falas políticas que tratam “igualdade” como ameaça à ordem.
O espelho da elite continua em alta definição
A permanência de Odete Roitman como sucesso popular e símbolo cultural não é um erro da teledramaturgia. É, na verdade, um acerto brutal. Sua figura, polida e venenosa, condensa o que insistimos em negar: que a violência simbólica sobrevive bem vestida, educada, bem colocada no LinkedIn.
Odete nos revela — com perfume francês, frases milimetricamente afiadas e uma taça de conhaque na mão — que a elite brasileira não precisou evoluir para sobreviver. Bastou sofisticar sua linguagem.
O preconceito saiu da mesa de jantar e passou a se esconder atrás da “meritocracia”.
A repulsa pela mistura virou “defesa da cultura”.
A manutenção das desigualdades se esconde sob o nome de “liberdade econômica”.
Talvez por isso ela nunca desapareça.
Enquanto o Brasil se recusar a encarar sua desigualdade como estrutura — e não como acidente —, Odete Roitman seguirá viva. E fazendo sucesso. Reaparecerá sempre que precisarmos de uma desculpa bem falada para continuar sendo excludentes.
No fundo, Odete Roitman não é a vilã que odiamos. É a vilã que reconhecemos. E, em muitos casos, que admiramos em silêncio.
Talvez essa seja a tragédia mais atual da teledramaturgia: nos mostrar que o Brasil de 2025 continua escrevendo novelas com roteiros de 1988. E que o público, encantado, ainda aplaude a mesma antagonista.
Nota da Redação:
Esta matéria integra a cobertura cultural sobre o remake da novela Vale Tudo. As interpretações sociológicas aqui presentes foram colhidas junto a fontes especializadas e não representam, necessariamente, a opinião institucional do veículo.