Opinião: Odete Roitman está mais viva do que nunca — e o Brasil, mais doente do que em 1988
Ícone da elite autoritária na redemocratização de 1988, Odete Roitman retorna em 2025 com nova atriz, nova estética e a mesma frieza — mas agora é idolatrada por um Brasil que já não sabe identificar suas vilãs.
Por Fernanda Cappellesso | Colunista de Cultura, Política e Sociedade
Em 1988, o Brasil assistia à morte de Odete Roitman com uma intensidade que a própria Constituinte não conseguia provocar. Os três tiros que mataram a vilã de Vale Tudo pareceram encerrar não apenas a trama, mas um ciclo de valores. Odete, símbolo cruel da elite racista, impune e arrogante do Brasil pós-ditadura, tombava como se tombasse também o Brasil velho — e nascia a esperança constitucional.
Hoje, em 2025, Odete está mais viva do que nunca. Não apenas porque voltou à televisão, interpretada por Débora Bloch, mas porque foi resgatada pelo imaginário coletivo como símbolo de força, elegância e dominação. A mulher que outrora representava tudo o que o Brasil precisava superar se tornou ícone aplaudido, transformada em carrossel de frases poderosas nas redes sociais, em tributo digital, em culto.
Não estamos mais diante da vilã. Estamos diante do fetiche do poder cruel — bem articulado, bem vestido, bem aceito.
1988: quando matar Odete era um gesto político
A redemocratização ainda engatinhava. A inflação destruía salários. A Constituinte acabava de nascer. O povo assistia, com fome, ao esfarelamento moral de uma elite que saíra da ditadura intacta — econômica e judicialmente. Vale Tudo era, então, mais do que entretenimento: era comentário político. Odete Roitman condensava o esgoto ético das elites brasileiras: elitista, racista, imoral, debochada. Uma mulher que humilhava os pobres, desprezava a honestidade e defendia abertamente a corrupção.
A bala que a matou — e que a televisão reprisou em câmera lenta — simbolizava a rejeição a esse Brasil.
2025: quando admirar Odete é uma confissão nacional
O país agora é outro. Polarizado, hiperconectado, fatigado. O poder virou performance. A crueldade, conteúdo. A esperteza, valor. A nova Odete, agora refinada por Débora Bloch, retorna com os mesmos traços essenciais — frieza, sarcasmo, domínio absoluto — mas com outra embalagem: menos grotesca, mais sedutora. Menos caricata, mais identificável. E o mais assustador: mais admirada do que temida.Não há mais tiros. Há reels.
A morte da atriz, na ficção ou nos boatos de internet, virou motivo de vigílias digitais. Petições, hashtags, homenagens. “Ela não pode morrer.” Porque agora ela nos representa. Ela é a mulher que não se desculpa, que não hesita, que não se dobra. Mas qual Brasil é esse que precisa de Odete viva?
A geração da crueldade estética
Segundo a psicóloga Thaís Rangel, a ascensão de Odete em 2025 revela o adoecimento simbólico de uma sociedade esgotada: “A personagem virou referência para um feminino poderoso, mas emocionalmente anestesiado. Ela representa a mulher que não sente culpa, não teme o julgamento, não cede — algo que parece libertador, mas é também a reprodução de uma lógica opressiva com maquiagem de empoderamento.”
Odete Roitman tornou-se um produto cultural da era do niilismo elegante. Sua figura é usada para justificar arrogância como inteligência, dominação como força, exclusão como critério. As novas gerações, moldadas pelo cansaço político e pela busca de pertencimento simbólico, passaram a vê-la não como advertência, mas como referência.
Do Brasil constitucional ao Brasil do colapso moral
O Brasil de 1988 lutava para se tornar uma democracia. O de 2025 luta para continuar sendo. Instituições questionadas, Congresso paralisado, redes dominadas por retórica de ódio e manipulação emocional. É nesse terreno fértil que Odete ressurge — não mais como sombra de um passado a ser superado, mas como figura compatível com o presente.
“O que mais assusta não é o retorno da personagem, mas a sua consagração”, analisa o sociólogo Paulo Bernardes. “Estamos normalizando a figura da elite que não precisa mais se esconder. Odete não é exceção. É espelho.”
Do símbolo de rejeição ao modelo de comportamento
Em 1988, a morte de Odete foi uma catarse. Em 2025, sua presença é uma estratégia de marketing. Ela circula em vídeos de coaching, legendas motivacionais, discursos sobre liderança. Seu sarcasmo virou sabedoria. Sua frieza, controle emocional. Sua arrogância, sofisticação.
É preciso perguntar: o que aconteceu conosco?
Por que o Brasil que antes queria enterrar a crueldade, hoje a edita em filtros dourados e exporta como “empoderamento feminino de alto nível”? A resposta talvez esteja no modo como nos cansamos da ética, e como passamos a ver nela um obstáculo — não uma bússola.
Odete é a elite que nunca morreu. Apenas se digitalizou.
Ela já não grita. Ela legenda. Já não manda calar. Ela humilha com afeto. Já não despreza os pobres. Ela “os ensina a vencer”. Ela usa roupas minimalistas, lê Martha Medeiros, conhece Freud e sabe usar o algoritmo.
E nós — seduzidos por sua estética, pela sua inteligência cruel, por sua potência inegável — paramos de combatê-la.
Não foi Odete que mudou. Fomos nós.
Odete Roitman não ressurgiu como heroína. Mas o Brasil de 2025 deixou de saber quem são seus vilões. Ou pior: passou a desejá-los. Se em 1988 ela tombava com três tiros, hoje ela se levanta com três hashtags: #OdeteVive, #ElaVoltou, #RainhaNãoMorre.
Isso não é ficção. É diagnóstico. E diz mais sobre nós do que sobre ela.