Tradição que move o mundo: conheça a celebração goiana de 280 anos que atrai turistas do Japão ao interior de Goiás
Na madrugada silenciosa da Quinta-feira Santa, sob a luz trêmula de centenas de tochas, o centro histórico da cidade de Goiás, antiga Vila Boa, se transforma em um cenário de fé, emoção e memória. A Procissão do Fogaréu, realizada há 280 anos, é o ápice de um ciclo de 40 dias da Semana Santa vilaboense, que integra religiosidade, tradição oral, artes performáticas e turismo cultural. Em 2025, a celebração atraiu fiéis e visitantes de todas as regiões do Brasil e de países como Estados Unidos, Japão, Equador e Índia.
A procissão, que simboliza a perseguição e prisão de Jesus Cristo pelos soldados romanos, é encenada por homens encapuzados — os farricocos — em trajes coloridos, que percorrem o centro da cidade carregando tochas e entoando cânticos. O ritual começa à meia-noite de quarta para quinta-feira e emociona tanto devotos quanto turistas, que se amontoam pelas ruas coloniais tombadas como Patrimônio Histórico da Humanidade pela Unesco.
“É uma experiência que transcende o religioso. É história viva, é cultura compartilhada. As pessoas voltam transformadas”, define a secretária estadual de Cultura, Yara Nunes.
De Sevilha a Goiás: as raízes da Procissão do Fogaréu
Inspirada em rituais medievais da Semana Santa espanhola, especialmente os de Sevilha, a procissão foi introduzida em Goiás por padres da ordem dos oratorianos por volta de 1745. Ao longo dos séculos, a prática foi interrompida, reinventada e resgatada diversas vezes, sendo revitalizada definitivamente em 1965 com a fundação da Organização Vilaboense de Artes e Tradições (OVAT). Desde então, a celebração ganhou status de patrimônio imaterial e tornou-se símbolo da identidade cultural goiana.
Durante a procissão, os farricocos saem do Museu de Arte Sacra da Boa Morte e seguem pelas ruas até o Santuário de Nossa Senhora do Rosário. No trajeto, encenam a captura de Cristo, cuja imagem é representada por uma pintura feita em linho por Maria Veiga, bisneta do escultor sacro Veiga Valle.
Fogaréuzinho: onde a tradição começa cedo
Na tarde da Quarta-feira Santa, crianças da cidade participam do Fogaréuzinho, uma versão infantil e pedagógica da procissão, promovida pela Escola Letras de Alfenim. Meninos e meninas trajam roupas semelhantes às dos farricocos e carregam tochas simbólicas, em uma caminhada que introduz os pequenos à cultura e à espiritualidade local. O cortejo começa às 17h e percorre pontos estratégicos da cidade, reunindo famílias inteiras e criando vínculos entre gerações.
“Trata-se de uma tradição que não só se preserva, mas se renova com a juventude. É um gesto de pertencimento cultural”, avalia Rafael Lino Rosa, professor e pesquisador de Ciências da Religião.
Procissão dos Penitentes: silêncio, capuzes e sete paradas
Ainda na noite da Quinta-feira Santa, às 23h, inicia-se a Procissão dos Penitentes, também conhecida como Procissão das Almas. Com trajes brancos e capuzes que ocultam o rosto, os fiéis caminham em silêncio entoando ladainhas, clamando pelas almas dos mortos. A caminhada parte de sete locais sagrados da cidade, entre eles igrejas, velórios e o antigo campo da forca, e percorre becos e ruas estreitas até o Cemitério São Miguel Arcanjo.
As sete paradas ao longo do caminho simbolizam as Sete Dores de Nossa Senhora, compondo um cenário de introspecção e respeito aos antepassados. A origem dessa prática remonta à Europa do século XIV, após a peste negra, e chegou ao Brasil colonial através das cidades do ciclo do ouro, como Goiás, Ouro Preto e Diamantina.
Fé, economia e turismo em sintonia
Em 2025, o Governo de Goiás destinou cerca de R$ 400 mil à realização da Semana Santa vilaboense — R$ 200 mil via Secretaria de Cultura e outros R$ 199 mil por meio do Programa Goyazes, com patrocínio da Equatorial Energia. O investimento é estratégico: além de preservar o patrimônio, impulsiona a economia local com o aumento da ocupação hoteleira, consumo no comércio e circulação de visitantes em pontos turísticos da cidade.
“Seguimos trabalhando para garantir a infraestrutura necessária para que todos os visitantes tenham uma experiência única e emocionante”, afirmou a secretária Yara Nunes.
A presença de turistas estrangeiros, como grupos vindos do Japão e dos Estados Unidos, reforça o potencial da cidade de Goiás como destino de turismo religioso internacional. A tradição centenária, unida ao charme do casario colonial e à hospitalidade local, transforma a cidade em um polo espiritual e cultural nos dias que antecedem a Páscoa.
Uma herança que não se apaga
O ciclo de 40 dias da Semana Santa na cidade de Goiás é composto por nove procissões tradicionais: do Depósito, do Encontro, de Nossa Senhora das Dores, de Ramos, do Fogaréuzinho, do Fogaréu, dos Penitentes, do Senhor Morto e da Transladação. Cada uma delas representa um capítulo simbólico da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus Cristo, transmitindo valores de fé, resistência e comunidade.
Mais do que uma celebração religiosa, a Procissão do Fogaréu é um rito coletivo que atravessa séculos sem perder sua força. É uma tradição que move o mundo — e que, a cada novo ciclo, reacende a chama da cultura goiana.