Goiás tem 42% mais vegetação nativa do que se estimava, revela levantamento inédito com tecnologia de ponta
Atlas detalha mapeamento de remanescentes do Cerrado goiano nas bacias dos rios Meia Ponte e dos Bois. Dados alteram parâmetros ambientais, econômicos e de políticas públicas no estado.
O Cerrado brasileiro perdeu, em média, 1,1 milhão de hectares de vegetação nativa por ano entre 1985 e 2022, segundo dados do MapBiomas, plataforma colaborativa que monitora mudanças no uso do solo no Brasil. Em Goiás, um dos estados que mais sofrem pressão do agronegócio sobre o bioma, a percepção era de que as perdas seguiam esse mesmo padrão. Mas um levantamento inédito mostra que a realidade é mais complexa.
Um novo estudo revelou que Goiás tem 42% mais vegetação nativa do que se estimava até agora. O dado é resultado do Atlas dos Remanescentes de Vegetação do Estado de Goiás, mapeamento que aplicou tecnologias de alta resolução para analisar com precisão inédita as bacias dos rios Meia Ponte e dos Bois, áreas que concentram grande parte da pressão agrícola no estado.
O levantamento identificou 12.563 km² de vegetação nativa, área muito superior ao que apontavam bases anteriores, como o próprio MapBiomas.
— Esses números não significam que há mais vegetação do que no passado, mas que nunca havíamos mapeado com esse nível de precisão. Fragmentos pequenos, invisíveis nas metodologias anteriores, agora aparecem e são contabilizados, explica o geógrafo Nilson Clementino Ferreira, coordenador técnico do projeto.
Tecnologia muda o jogo
O levantamento utilizou imagens de satélite com resolução de até 2 metros, uma diferença expressiva frente às bases tradicionais, que trabalham com resoluções de 30 metros. Esse avanço permitiu identificar fragmentos muitas vezes cercados por lavouras, mas que ainda cumprem funções ecológicas fundamentais, como corredores de biodiversidade, proteção de nascentes e estoques de carbono.
De acordo com Pedro Almeida, analista em geotecnologias da Universidade de Brasília (UnB), não envolvido no projeto, o estudo tem potencial para redefinir não só as políticas ambientais de Goiás, mas também influenciar o mercado de carbono e estratégias de licenciamento ambiental. — O dado técnico muda a régua. Áreas antes consideradas alteradas agora são reconhecidas como vegetação nativa. Isso tem efeito jurídico, econômico e ambiental imediato, afirma.
Como foi feito o levantamento
O mapeamento foi desenvolvido pelo Laboratório de Sensoriamento Remoto e Geoprocessamento (Lapig), da Universidade Federal de Goiás (UFG), em parceria com a Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Semad-GO). O trabalho aplicou algoritmos de inteligência artificial treinados para reconhecer seis tipos principais de vegetação nativa do Cerrado: de florestas secas e savanas úmidas a campos campestres.
O processo dividiu a área em blocos de 5×5 km, que por sua vez foram subdivididos em quadrículas de 10×10 metros, uma escala inédita no mapeamento ambiental do Cerrado. A metodologia combinou imagens dos satélites CBERS-4A, ferramentas como Google Earth Engine e QGIS, além de validações de campo que calibraram os algoritmos.
O cruzamento dos dados resultou em um mapeamento que não apenas quantifica, mas também qualifica os tipos de vegetação remanescente, diferencia florestas, savanas e campos, e aponta áreas em degradação ou recuperação.
— O Cerrado é extremamente heterogêneo. Muitas vezes, uma savana degradada pode ser confundida com pastagem nas imagens tradicionais. A diferença agora é que temos capacidade de distinguir essas áreas com muito mais precisão, explica Nilson Ferreira.
Pressão econômica sobre o Cerrado goiano
Goiás é um dos estados brasileiros mais pressionados pela expansão agrícola. Dados do próprio Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que mais de 70% da área produtiva do estado é destinada a soja, milho e pastagem. A maior parte desse avanço ocorreu sobre áreas originalmente de Cerrado.
Para o analista ambiental Carlos Ribeiro, que acompanha o mercado de carbono, os dados do Atlas devem impactar diretamente projetos de compensação ambiental e de comercialização de créditos de carbono. — Se você tem mais vegetação nativa do que se imaginava, isso altera os cálculos de estoque de carbono e também muda o cenário para investidores, setor privado e órgãos ambientais.
Política ambiental com dados mais robustos
Além do mercado, os próprios gestores públicos devem rever estratégias de fiscalização, licenciamento e preservação. — Ter um mapa mais preciso permite não apenas proteger melhor, mas também planejar onde e como recuperar, além de definir áreas prioritárias para conservação. Isso reduz margem de erro e melhora o uso dos recursos públicos, analisa Marina Oliveira, especialista em gestão ambiental.
O próximo passo, segundo os coordenadores do projeto, é expandir o mapeamento para todo o estado de Goiás. A expectativa é que os dados sirvam como base para revisar o Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE), políticas de restauração florestal, gestão de recursos hídricos e controle do desmatamento ilegal.
Se confirmado o padrão encontrado nas bacias do Meia Ponte e dos Bois, Goiás poderá reescrever seus próprios mapas ambientais — com consequências diretas para a gestão do Cerrado, para o agronegócio e para os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil na agenda climática.